Em pouco tempo, iniciativas próprias de cantores reclusos em casa se transformaram em grandes eventos com patrocínio de marcas e arrecadação beneficente de milhares de dinheiro.
À distância, com a pandemia do novo COVID-19 e as recomendações de distanciamento social, eventos de música foram duramente atingidos. Segundo dados de um levantamento do Data SIM realizado em Março, no Brasil, mais de 8 mil shows e apresentações foram cancelados ou adiados em 21 estados do país em 2020.
O palco foi transferido para a tela do celular ou computador. Músicos de todos os estilos têm realizado transmissões em que apresentam seu repertório, as chamadas "lives", que acontecem normalmente nas redes sociais. Cada dia da quarentena conta com um cardápio formidável de "shows" online. Muitos desses eventos têm promovido arrecadações para o combate ao coronavírus.
Com calça de pijama listrada e camiseta estampada com o personagem de animação Taz, Niall Horan, ex-One Direction, procura no Google a letra da próxima música que vai cantar.
No início das quarentenas, a maneira mais comum de live musical era uma proposta bem despojada. Geralmente, era o artista em um cômodo da casa, filmando com seu celular e tocando enquanto conversa com o público. Foi assim que se apresentou também, por exemplo, o inglês Chris Martin, do Coldplay, o americano John Legend, e Ludmilla, acompanhada de um amigo ao violão.
(Fotos Reprodução/Redes sociais dos artistas)
Na segunda quinzena de Março, dois festivais virtuais reuniram lives de dezenas de músicos brasileiros de diversos gêneros. O Festival Fico em Casa e o #tamojunto, iniciativa do jornal O Globo, transmitiram uma programação gerada a partir dos perfis no Instagram dos artistas.
Artistas sertanejos como Jorge e Mateus e Gusttavo Lima apostaram em produções mais sofisticadas. Seus shows online bateram recordes de audiência no YouTube. Com patrocínio de marcas de bebida, posicionaram as lives como um atraente filão para ações de marketing no momento de isolamento.
As chamadas "super-live", iniciada no Brasil por Gusttavo Lima, em um transmissão de cerca de cinco horas no YouTube em Março, conseguiu um recorde de mais de 700 mil espectadores simultâneos, ultrapassando a marca da cantora americana Beyoncé, até então com 458 mil em 2018 com sua apresentação no festival Coachella. Com objetivo beneficente, a live arrecadou, segundo o cantor, R$ 500 mil em dinheiro, alimentos e equipamentos de segurança para o combate ao coronavírus.
Se um artista toca uma música de um compositor em um estádio para 50 mil pessoas, o autor vai arrecadar um bom dinheiro de direitos autorais pela execução pública. E numa live aberta para 300 mil usuários do Instagram, como fica?
"A situação que vivemos hoje é muito específica e não estava prevista nos direitos autorais de lugar nenhum", diz o advogado Daniel Campello, da empresa ORB Music.
Ele conta que o sistema brasileiro ainda estava se adaptando ao streaming. O YouTube começou a pagar aos autores brasileiros em 2018 e o Facebook, dono do Instagram, só fez o primeiro pagamento por execuções públicas agora, em Março de 2020 e tudo se baseava nos dados catalogados de streaming. Nessas lives espontâneas, os intérpretes teriam que informar às plataformas os setlists que tocaram em cada transmissão, o que não acontece.
(Fotos Reprodução/Redes sociais dos artistas)
Alguns artistas também já sofreram representações éticas por parte do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) devido às ações realizadas entre as músicas. Algumas atitudes geram denúncias de espectadores, fazendo órgãos como o do conselho tomar a decisão.
As representação são abertas a partir de denúncias recebidas de dezenas de consumidores, que consideraram que as ações publicitárias carecem de cuidados recomendados pelo Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária para a publicidade de bebidas alcoólicas. Denúncias citam a falta de mecanismo de restrição de acesso ao conteúdo das lives a menores de idade.
Entre tentativa e erro, as transmissões apontam caminhos para a música durante a quarentena. "Pode ser um novo formato que vai ficar para os grandes artistas, pois eles conseguem ganhar dinheiro com isso", avaliou Dani Ribas, doutora em sociologia da música pela Unicamp e diretora de pesquisa do Data SIM e da Sonar Cultural. "Para os pequenos é mais uma maneira de se comunicar com o público de maneira mais direta. A live para eles está se transformando na nova esfera pública, muito mais do que em um novo filão de mercado", finaliza.
Para ela, é preciso entender que a live de música está concorrendo com o livro e com o filme da Netflix na tentativa de reter a atenção das pessoas. Nessa competição, é muito difícil para um artista de menor projeção se sobressair e atingir novos ouvintes.
Os shows são a maior fonte de renda de artistas e equipes há vinte anos, desde a decadência dos CDs e ascensão do MP3. O streaming voltou a dar boa renda nos últimos anos, mas são os palcos que pagam as contas de artistas grandes e independentes.
(Foto Getty Images)
Acreditasse que é cedo para dizer o que acontecerá com o formato depois que passar a época de isolamento social. "Na minha opinião, absolutamente nada é comparável à sensação da música apresentada ao vivo, num clube pequeno ou num festival onde 5 mil pessoas estão em transe por causa de um som, da performance, das pessoas em volta", ressaltou Fabrício Nobre, fundador do Festival Bananada.
No futuro do negócio, esperasse que associações de gestão de direitos combinem com as plataformas maneiras claras de se remunerar autores e músicos nessa nova era. Mesmo assim, outros profissionais técnicos continuam sem renda na quarentena. Artistas independentes dos EUA, que não têm a reserva financeira de popstars, já testam alternativas. O Sofa King Fest 2020 lista lives de bandas e cantores indies e links para quem quiser doar para eles e suas equipes.
O que será da música? Seja no modelo artístico, tecnológico ou de negócios, estes primeiros momentos de lives são apenas o começo da adaptação da música pop à quarentena.
"Fico curiosa para saber o que vai acontecer quando a gente sair dessa, o que a gente vai ter feito nesse tempo" diz Gloria Groove. Ela dependia do dinheiro de shows, e agora "estuda como os outros artistas estão administrando". Ao concluir, Gloria cita uma série de terror, mas com esperança: "É muito 'Black Mirror', mas quem sabe não esse jeito que a gente vai achar para estar perto um do outro?", finaliza.